segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A Formação do léxico Português(filologia)

A Formação do léxico Português


De acordo com Azeredo (2000:72):
“quando a língua portuguesa começou a ser escrita – no início do século XIII – seu léxico reunia cerca de 80% de palavras de origem latina e outros cerca de 20% de palavras pré-romanas, germânicas e árabes.”
Trata-se do acervo vocabular que se pode denominar hereditário, isto é, aquele surgido junto com o idioma, que a ele forneceu padrão fonético e morfológico. A partir do século XIII, fatores diversos colocaram o português em contato com várias outras línguas ao redor do planeta. Como resultado disso, a adoção de numerosas palavras pertencentes a esses idiomas, num processo de enriquecimento contínuo, que ainda hoje se verifica.
Nesse sentido, a língua portuguesa ostenta, em seu pecúlio lexical, vocábulos provenientes de sistemas lingüísticos tão diferentes quanto o provençal, o holandês, o hebraico, o persa e o quíchua ou o chinês, o turco, o japonês, o alemão e o russo, sem falar em idiomas bem mais familiares, como o inglês, o francês, o espanhol e o italiano, os quais, juntamente com muitos outros, ajudaram a moldar esse heterogêneo mosaico que é o léxico português.
Palavras hereditárias e palavras de empréstimo
Aplicando-se ao português uma noção que é pertinente às línguas de modo geral, é possível classificar as palavras que compõem o seu vocabulário em hereditárias e de empréstimo.
As primeiras, elementos do léxico original, “fazem parte de uma tradição lingüística ininterrupta” – Pisani (s/d:57) –, refletindo “as transformações fonéticas que caracterizam o idioma à época dos seus primeiros momentos” – Bechara (1998:116). Transmitidas oralmente, encontram-se identificadas com a fase pré-histórica do idioma, tendo passado por todas as transformações fonéticas do latim ao português, ou seja, são “aquelas que viviam no léxico da língua quando deixou de ser latim para ser identificada como português, numa passagem ininterrupta no tempo e no espaço” – Bechara (2002:217-8).
Nos termos de Melo (1981:158), trata-se do conjunto constituído pelas palavras “que vieram por tradição histórica, de boca a ouvido, através das gerações”. Compreendem não só a base latina popular – indiscutivelmente, o grosso do conjunto –, mas igualmente unidades lexicais de origem pré-românica, isto é, das línguas pertencentes aos povos que habitavam a Península Ibérica antes da chegada dos romanos no século II a.C. (arroio, baía, balsa, barro, bezerro, bico, bizarro, brio, cabana, cama, cambiar, caminho, camisa, carpinteiro, carro, cerveja, esquerdo, garra, gato, gordo, lança, légua, lousa, manto, mapa, mata, peça, saco, sapo, sarna etc.). E pós-românicas, ou seja, germanismos (frutos das invasões bárbaras do século V, por exemplo, albergue, anca, arauto, arreio, banco, bando, banho, branco, brasa, carpa, coifa, elmo, espora, estribo, guerra, roupa, sabão) e arabismos (resultado da presença dos árabes na Península a partir do ano 711, por exemplo, açougue, açude, alcachofra, alface, álgebra, alicate, arroz, azeite, oxalá), as quais contribuíram da mesma maneira para a formação do português.
Baseando-se na forma fonética – “combinação de fonemas concorde com a estrutura fonética de determinada língua” (Jota, 1981:forma fonética) – oferecida pelos itens léxicos pertencentes à camada hereditária, é possível afirmar que gato, leão, leite e mesa podem representar lexemas legitimamente portugueses, ao passo que speranza, felicidad, eau e school não podem, visto estarem em desacordo com os padrões dessa língua.
Melo (1981:149) não fala em palavra hereditária, mas em continuidade lingüística, isto é,
as palavras que compõem o fundo originário do idioma, as palavras herdadas, que nasceram com a língua e receberam a impressão de seus sinais característicos e de suas tendências marcantes.
No caso do português são os vocábulos que se usavam no latim vulgar e no romance portucalense e que continuaram a ser empregados pelo povo na fala de suevos, visigodos e mais gente que habitou a faixa ocidental da Península entre os séculos V e IX. As contribuições germânica e árabe se capitulam nesta primeira fonte.
Por outro lado, palavras de empréstimo são as provenientes de outros sistemas lingüísticos – inclusive do latim, os chamados cultismos ou eruditismos – acolhidas pelo português após o término de seu período de formação. Artificialmente vestidas à portuguesa, denunciam, em maior ou menor grau, sua procedência alienígena.
Conforme observa Robins (1977:324) relativamente à relação francês / latim:
“Evidentemente, o termo empréstimo é apenas usado de modo sensato em relação a uma língua admitida já estar em existência independente. Não se pode considerar o vocabulário do francês, que tem estado em uso contínuo desde a época dos romanos, enquanto ocorreram mudanças lingüísticas constituídas da passagem do latim para o francês, como empréstimos do latim, já que o francês é simplesmente a forma que o latim tomou numa certa parte da Europa.”

Já Bechara (1998:115-6), ao comentar a relação português / latim, afirma que:
“Antigamente, uma forma do tipo pé e mês era chamada popular, e outra do tipo de pedal e mensal era chamada erudita, porque, com pequena adaptação ao gênio do foneticismo português, refletia a integridade da forma originária latina. Hoje, em vez desses nomes, que podem levar o leitor a dar interpretação literal aos adjetivos popular e erudita – e assim entender uma meia verdade –, preferem-se, respectivamente, as expressões hereditário e de empréstimo, para indicarem formas que existiam no léxico na época em que o português se constituiu como tal ou, então, formas que foram introduzidas depois dessa fase.”

Melo (1981:149) conclui:
“Este vocabulário original é o mais importante, não só por ser o mais freqüente no uso comum, mas também por constituir a fôrma (sic) segundo a qual se modelarão, pelo tempo adiante, milhares e milhares de outras palavras, advindas da importação estrangeira ou decorrentes de formação vernácula.”

Cultismos e semicultismos
A maior parte do léxico da língua portuguesa é, como já mencionado anteriormente, de origem latina. A porção mais significativa desse conjunto constitui-se dos itens lexicais populares, nunca é demais repetir, aqueles que, ao longo do tempo, foram sofrendo, na boca do povo, toda uma série de modificações fonéticas espontâneas e contínuas.
Ao lado desses, é possível identificar ainda os chamados cultismos ou eruditismos, introduzidos por via escrita – razão pela qual também são chamados de termos literários – depois que certas mudanças fonéticas não mais ocorriam. É fato conhecido que as leis fonéticas têm uma duração limitada no tempo, apresentando um período específico de atuação. Nesse sentido, é comum que essas palavras apresentem seqüências fonológicas e grupos consonantais evitados pela história do português, tendo havido “apenas a adaptação da parte final aos modelos mórficos portugueses [gênero, número e pessoa] e uma ou outra alteração para evitar grupos anômalos de fonemas (...)” – Câmara Jr. (1991:eruditos).
A absorção desses cultismos foi particularmente significativa durante o Renascimento, mas não se limitou a esse período. Como lembra Coutinho (1976:200), “as traduções de obras, sobretudo latinas, contribuíram para a existência de um grande número de palavras cultas, no nosso vocabulário”.
Em português, alguns adjetivos eruditos relacionam-se a substantivos populares, como nos casos de água / aquoso, céu / celeste ou celestial, dor / doloroso, fogo / ígneo, ilha / insular, lei / legislativo ou legal, luz / lúcido, mês / mensal, neve / nívio, olho / ocular, ouro / áureo, paz / pacífico, povo / popular, touro / taurino e vida / vitalício, enquanto certos superlativos eruditos derivam-se de adjetivos populares, por exemplo, crudelíssimo / cruel, fidelíssimo / fiel, paupérrimo / pobre.
Por vezes, a unidade léxica erudita apresenta a mesma origem de outra popular, o que faz surgir, então, as chamadas formas divergentes (cf., por exemplo, afeição / afecção, avesso / adverso, bola / bula, bucho / músculo, chamar / clamar, chave / clave, circo /círculo, coalhar / coagular, comprar / comparar, contar / computar, cunhado / cognato, dobro / duplo, eira / área, empregar / implicar, escuro / obscuro, estreito / estrito, feição / facção, feitura / fatura, findo / finito, frio / frígido, frouxo / fluxo, geral / general, grude / glúten, herdeiro / hereditário, leal / legal, leigo / laico, livrar / liberar, logro / lucro, lugar / local, macho / másculo, madeira / matéria, mãe / madre, mascar / mastigar, meigo / mágico, meio / médio, miúdo / minuto, paço / palácio, palavra / parábola, pardo / pálido, partilha / partícula, pendência / penitência, pesar / pensar, primeiro / primário, puir / polir, puxar / pulsar, queimar / cremar, ração / razão, recobrar / recuperar, rezar / recitar, rijo / rígido, rolha / rótula, ruído / rugido, sarar / sanar, segredo / secreto, silvar / sibilar, siso / senso, sobrar / superar, soldo / sólido, soma / suma, teia / tela, teso / tenso, traição / tradição, viço / vício.
Mencione-se, ainda, a existência, no léxico do português, das chamadas formas semicultas ou semi-eruditas, espécie de meio-termo entre as cultas e as populares, as quais distinguem-se dessas últimas por “apresent[arem] mudanças fonéticas, mas não as mudanças sistemáticas e fundamentais que constituem o conjunto das leis fonéticas do romanço lusitânico e do protoportuguês” – Câmara Jr. (1991:semi-eruditos).


Referências bibliográficas
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BECHARA, Evanildo. As palavras também escondem a idade. In: ELIA, Sílvio et al (org.). Na ponta da língua 1. Rio de Janeiro: Liceu Literário Português; Lucerna, 1998.
––––––. Por que segunda-feira em português? – 2. In: ––– et al (org.). Na Ponta da língua 4. Rio de Janeiro: Liceu Literário Português; Lucerna, 2002.
CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. 15ª ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. 7ª ed. rev. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.
ESTRELA, Edite & PINTO-COREIA, J. David. Guia essencial da língua portuguesa para comunicação social. 5ª ed. Lisboa: Notícias, 2001.
GALISSON, Robert & COSTE, Daniel (coord.). Dicionário de didáctica das línguas. Trad. Adelina Angélica Pinto et al. Coimbra: Almedina, 1983.
JOTA, Zélio dos Santos. Dicionário de lingüística. 2. ed. Rio de Janeiro: Presença, 1981.
MELO, Gladstone Chaves de. Iniciação à filologia e à lingüística portuguesa. 6. ed. rev. e melh. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1981.
PISANI, Vittore. Linguistica generale e indeuropea. Torino: Rosemberg & Sellier, s/d.
ROBINS, Robert Henri. Lingüística geral. Sup. da trad. Wilson Chrisóstomo Guarany. Porto Alegre: Globo, 1977.
SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. 6. ed. Rio de Janeiro: Presença, 1992.
VILELA, Mário. O léxico do português: perspectivação geral. In: Filologia e lingüística portuguesa 1. São Paulo: Humanitas – FFLCH/USP, 1997.
Organização: Professor Francisco Muriel

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