sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Do latim ao português

Do latim ao português
A língua portuguesa é uma das cinco línguas mais faladas no mundo -- cerca de 180 milhões de indivíduos utilizam-na como língua materna. É a língua nacional de Portugal (incluindo Açores e Madeira ) e do Brasil, a língua oficial de vários países africanos -- Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe -- onde convive com múltiplas línguas nacionais, e ainda sobrevive na Ásia -- Macau e Goa -- e na Oceania -- Timor – como língua de grupos minoritários.
A língua portuguesa pertence ao grupo das línguas românicas, ou neolatinas, e teve a sua origem no latim falado, levado para a Península Ibérica por volta do século II a.C., como conseqüência das conquistas políticas do Império Romano. Originado no Lácio, na Itália Antiga, o latim expandiu-se por quase todo o mundo conhecido devido ao espírito de organização e domínio bélico e político-cultural de Roma.
Sob o ponto de vista dos acontecimentos sociais e sua repercussão, da expansão territorial e do contato com outras línguas, a história das línguas românicas é constituída por dois momentos fundamentais: a romanização, em que as forças de unificação predominam sobre as de dispersão e a fragmentação, em que se observa o predomínio da diversificação sobre a concentração. Esses dois movimentos representam forças distintas que atuam no processo de variação e mudança lingüística: uma força centrípeta, da conservação, da unificação (normalmente exercida pelas instituições e mecanismos sociais de poder) e uma força centrífuga, de inovação, de diversificação ( impulsionada pelas mudanças culturais, pelo uso quotidiano e pela interação com outras culturas). Na origem do português, a romanização é conseqüência da força política de Roma no processo de expansão do seu Império, e a fragmentação realiza-se no fracionamento da România, como decorrência das invasões dos bárbaros, do seccionamento das províncias e da perda progressiva do poder romano sobre as regiões conquistadas.
A romanização e o conceito de "latim vulgar"
O Império Romano teve como origem o povo que habitava a região do antigo Lácio e que tinha como língua o latim. Esse povo, de instinto guerreiro e grande tino político, criou, a partir do século IV, um Império que atingiu três continentes – Europa, Ásia e África, compreendendo conquistas como a da Sicília, da Sardenha, da Península Ibérica, das Gálias, de Cartago, da África, da Macedônia, da Grécia, da Bretanha, da Dácia e da Mesopotâmia. No início da era cristã, o Império Romano atingiu o apogeu de sua expansão. Com a expansão do Império, os romanos impuseram a sua cultura -- língua, hábitos, valores – a todos os povos conquistados. E esse foi um dos fatores decisivos da hegemonia política e cultural que garantiu a implantação do latim falado como língua geral. Nesse processo, os romanos receberam influências dos povos conquistados, principalmente os gregos, que já se encontravam num estágio muito adiantado de elaboração cultural e artística. No caso específico do latim escrito, foi grande a influência grega, tanto na língua literária – com as obras de Vergílio e Cícero -- como no padrão gramatical – a gramática greco-latina. A rigorosa disciplina gramatical dessa língua literária distanciava-a da realidade da língua falada, altamente diferenciada em função da diversidade de etnias e de culturas que compunham o Império. Como língua escrita, era privilégio apenas de uma elite, o que leva alguns autores a afirmar, erroneamente, que esse padrão escrito correspondia à língua utilizada, no dia-a-dia, poressa classe social.
Para compreender a grande variedade do latim, é preciso entender como era constituída asociedade romana.
A organização social de Roma compreendia uma classe aristocrática (os patrícios), elite conservadora caracterizada pela educação e por costumes refinados. Essa classe dos patrícios separava-se da classe dos plebeus, formada pela população rural, pelos estrangeiros e por escravos libertos. Eram classes sociais muito diversificadas, e as variadas modalidades da língua dos romanos chegaram-nos sob as diversas denominações - sermo quotidianus, sermo urbanus, sermo plebeius, sermo militaris, sermo rusticus... Todas essas variedades se resumiam no inovador sermo vulgaris (ou latim vulgar, como é comumente chamado) - língua falada por todas as camadas da população.
Conforme Ilari (1997), essas "variedades refletem duas culturas que conviveram em Roma: de um lado, a de uma sociedade fechada, conservadora e aristocrática, cujo primeiro núcleo seria constituído pelo patriciado; de outro, a de uma classe social aberta a todas as influências, sempre acrescida de elementos alienígenas, a partir do primitivo núcleo da plebe." É preciso examinar com cuidado a expressão latim vulgar. O adjetivo vulgar tem sido empregado com vários sentidos. No sentido de corriqueiro, sem conotação pejorativa, referindo-se à língua falada em situações informais, pela população romana (incluindo a aristocracia); tem sido também usado no sentido de língua popular, derivado de vulgo, "povo"; e, finalmente, no sentido depreciativo de vulgarismo, isto é, uso lingüístico condenável, sob o ponto de vista purista conservador. Esse último entendimento é claramente equivocado, embora tenha sido, durante muito tempo, a orientação corrente entre os romanistas. Faz parte de uma visão superada de mudança, que se apoia nos princípios de deterioração lingüística (como se o latim vulgar fosse uma corrupção do latim clássico); de língua morta, (como se o latim, atualmente, fosse uma língua morta); de evolução cronológica (como se o latim vulgar tivesse sucedido ao latim clássico). Faz-se, normalmente, uma distinção entre latim vulgar e latim clássico. A expressão latim clássico deve ser entendida como a língua literária e a língua escrita em situação formal. Mattoso Câmara informa: "Estava sujeito a uma disciplina rigorosa e era tema de atenção por parte dos intelectuais e, mais particularmente, dos gramáticos, que se inspiraram na gramaticologia grega. Como uso refletido e aprendido, resistia às forças evolutivas da língua, cingia-se a um padrão escrito, que procurava ser imutável, e prestava-se mal para a vida social corrente, quotidiana" . ( Mattoso Câmara, 1979, p. 20)
Já o chamado latim vulgar, na verdade, diz respeito à língua viva, usada por todas as camadas da população romana, e portanto muito diversificada. E é exatamente nessa língua inovadora que têm início a nossa e as outras línguas românicas.
Segundo Mattoso Câmara (1979), "é justo dizer que as línguas românicas provêm do latim vulgar, no sentido relativo de que resultaram de um latim dinâmico, essencialmente de língua oral, em processo de perene evolução. Elementos do latim clássico, que estão nas origens românicas, são os que se integraram no processo evolutivo, fazendo-se vulgares."(p. 21).
A fragmentação do Império e as línguas românicas
O processo de fragmentação lingüística do Império Romano, responsável pela formação das diversas línguas românicas -- português, francês, espanhol, italiano e romeno, principalmente deve ser observado sob o ponto de vista lingüístico e político-social.
O latim falado nas diferentes regiões do Império Romano tinha uma realidade tão diversificada que, no século III da nossa era, a unidade lingüística do império já não existia. Essa imensa diferenciação dialetal é uma das principais causas da transformação do latim nas línguas românicas.
A respeito do processo de dialetação, Mattoso Câmara afirma: "A diferenciação dialetal explica-se, sempre, em parte, pela história cultural e política e pelos movimentos de população e, por outra, pelas próprias forças centrífugas da linguagem humana, que tendem a cristalizar as variações e criar dialetos em qualquer território, relativamente amplo, e na medida direta do maior ou menor isolamento das áreas regionais em referência ao centro lingüístico irradiador"(Mattoso Câmara, 1979).
Várias causas de caráter político-cultural são apontadas por Mattoso Câmara para a diversificação lingüística da România:- o fator cronológico - as regiões foram romanizadas em momentos diferentes, recebendo, portanto, o latim em diversos momentos de sua evolução;- o contato entre a cultura romana e as diferentes culturas dos povos conquistados;a grande diversidade sócio-econômica das regiões conquistadas;- Contribuíram para acelerar o processo de fragmentação lingüística os seguintes fatos históricos: - o edito de Caracala - que estabeleceu o direito de cidadania aos indivíduos livres do Império, resultando perda de privilégios para Roma (212);- a descentralização política e administrativa do Império - com a criação de doze dioceses, Roma perde o poder de ditar a norma lingüística; - a mudança da sede do Império para Bizâncio (330); - a divisão do Império Romano, provocada pela morte de Teodósio (395), em Império do Oriente e Império do Ocidente (este não resiste às inúmeras invasões).
Além desses soma-se: O estrato: a língua que sobrevive ao contato com outra língua quer substrato quer superestrato, desse contato resulta a progressiva assimilação das línguas de substrato quer superestrato.
O substrato:. língua usada antes por uma população que foi abandonada e suplantada por outra, por vários motivos: conquista, posse ou colonização da terra por outro povo. Os falares célticos utilizados na Gália antes da conquista romana nos territórios que hoje constituem a França foram substituídos pelo latim, são exemplos de substratos.
O superestrato: língua usada por povos conquistadores que introduzida na área conquistada não substitui a língua dos povos conquistados, podendo com o tempo vir a desaparecer, deixando-lhes alguns traços. Depois das grandes invasões, as línguas germânicas acabaram por desaparecer, mas exerceram sobre o romance uma influência léxica e sintática que não é de menosprezar. Esses povos posteriormente adotaram o latim como língua.
Adstrato:. língua falada que coexiste com outra no mesmo espaço territorial, influenciando-a e dela recebendo influência, porém nenhuma delas é assimilada pela outra. diz-se, por exemplo, que o grego e o latim foram Adstrato, no período em que Roma dominou a Grécia. O espanhol, também é o Adstrato do português brasileiro (tomado este como referência nas regiões da fronteira Brasil / Uruguai).
A formação do Português
A romanização da península ibérica: Alguns fatos históricos repercutiram-se na formação da Língua Portuguesa: a conquista romana da Península Ibérica, a invasão dos bárbaros germanos, a constituição dos impérios bárbaros, como o visigótico, o domínio árabe na Península, a luta da reconquista cristã, a formação do reino de Portugal e a expansão ultramarina. A România compreendia o conjunto de províncias do Império Romano onde o latim veio a tornar-se a língua de civilização: as Gálias ( França e parte da Bélgica atuais), a Península Ibérica ou Hispânica, a Líbia, ou litoral mediterrânico da África e a Dácia, nos Balcãs (Romenia). A implantação do latim na Península Ibérica constitui factor decisivo para a formação da língua portuguesa, e ocorre no século II a.C., quando as legiões de Roma, depois de longas lutas, conquistam a Hispânia ( mapa da Penísula Ibérica no século III a.C.) e impõem a sua civilização. Com excepção dos bascos, todos os povos da Península adotaram o latim como língua e se cristianizaram. O território da Península Ibérica ( século I a.C. ) foi dividido, inicialmente, em duas grandes províncias, Hispânia Citerior e Hispânia Ulterior. Esta última sofreu nova divisão em duas outras províncias, a Bética e a Lusitânia, onde se estendia uma antiga província romana, aGallaecia.
A romanização da Península não se deu de maneira uniforme, mas pouco a pouco o latim foi-se impondo, fazendo praticamente desaparecer as línguas nativas. Os povos que habitavam a Península eram numerosos e apresentavam língua e cultura bastante diversificadas. Havia duas camadas de população muito diferenciadas: a mais antiga - Ibérica - e outra mais recente - os Celtas, que tinham o seu centro de expansão nas Gálias. Muito pouco se conservou das línguas pré-romanas. Há resquícios apenas na área do vocabulário. Quando se deu a queda do Império Romano, a Península Ibérica estava totalmente latinizada ( no século I d.C.). Nesse quadro de mistura étnica, o latim apresentava feições particulares, mesclado de elementos celtas e ibéricos, basicamente no vocabulário.
As invasões de bárbaros e árabes - o romanço português
Alguns povos bárbaros:
Os Vândalos: Descendiam dos germanos orientais, vindos, certamente, da região sul da Escandinávia e por pressão de outros povos bárbaros foram obrigados a migrar para o sul. Com aliança com outros povos consegue passar o Reno, fixando-se, depois, na Península Ibérica. Lingüisticamente, os vândalos estavam ligados ao gótico e sua passagem não registra influências de substratos.
Os Godos: Originário também do sul da Escandinávia, dividiram-se em dois grandes grupos, os Visigodos e Ostrogodos. Os primeiros, também pressionados por outros povos, recebem autorização para viver a România, mas logo se rebelam e se fixam por vária partes do império e permanecem na Península Ibérica até as invasões árabes. Os segundos, depois de colaborarem com o Império Romano do Ocidente, invadem a Itália e vence os germanos que tomaram Roma em 476 a.C.. Em contato com os invasores o romance peninsular se enriqueceu com vários empréstimo lexicais e morfológicos.
Os Francos: Este povo sempre ficaram estabelecidos à direita do Reno e, ao contrário do que ocorreu na Ibéria, souberam criar um Estado comum a população românica e franca. Com o norte germânico e ao sul romanizada, assimilou lentamente dois povos e duas língua, o francês e o franco-provençal.
Os lombardos: vindos da Escandinávia, conquistaram Pávia, Toscana, Úmbria, Espoleto, Benevento, Ravena, Nápolis, Roma e a Sicília. O reino lombardo termina em 774, após ser conquistado por Carlos Magno. Lingüisticamente, sua fixação ao norte da Itália fez com que a região se integrasse com as tendências rético-gálicas.
Os Alamanos: povo germânicos vindo da parte superior do rio Meno. Interditaram o comércio e as rotas nas vias romanas, interrompendo a comunicação e interação lingüistica entre a Gália e as regiões alpinas, acentuando as diferenciações dialetais.
Os Eslavos: Partiram do território em que temos hoje a Rússia Branca e a Ucrânia. Os eslavos meridionais se fixaram nas províncias Balcãs e substituíram o romance românico por suas línguas eslavas. Apenas uma língua românica conseguiu sobreviver, o romeno.
Por volta do século V, a Península sofreu invasão de povos bárbaros germanos - suevos, vândalos, alanos e visigodos. Com o domínio visigótico, (mapa da Europa do século V ) a unidade romana rompe-se totalmente. Os visigodos romanizaram-se: fundiram-se com a população românica, adoptaram o cristianismo como religião e assimilaram o latim vulgar. Rodrigo, o último rei godo, lutou até 711 contra a invasão árabe, defendendo a religião cristã, tendo como língua o latim vulgar na sua feição hispano-românica. O século V marca o início do Romanço-- período que se estende até ao começo do século IX, em que ocorre a grande diferenciação do latim numa multiciplicidade de falares. Trata-se de uma fase de transição, que resulta no aparecimento de textos escritos nas diversas línguas românicas. Dentre esses falares intermédios, é o romanço Lusitânico, bastante inovador, o que nos interessa principalmente. No século VIII, os povos muçulmanos invadiram a Península Ibérica . Compreendiam os árabes e os berberes e eram chamados de mouros pelos habitantes da Península, que foi totalmente dominada. O árabe era a sua língua de cultura e sua religião, o Islamismo. Tanto a língua como a religião eram muito diferentes da língua falada na região e não houve imposição de uma ou outra. A língua árabe era a oficial, mas o latim, já bastante diferenciado, era a língua de uso. Extremamente diversificado, o latim continuou a evoluir entre a população submetida. Como resultado da interpenetração da língua árabe e da língua popular de estrutura românica, o moçárabe era falado pela população cristã que viveu sob o domínio árabe. Nas montanhas das Astúrias (norte da Península) tem início, então, a Reconquista Cristã - guerra militar e santa, abençoada pela Igreja e que provocou importantes movimentos de populações. Partindo de um núcleo de resistência (restos dos exércitos hispano-visigóticos e cristãos rebeldes), o movimento foi alastrando para o sul, recuperando os territórios perdidos. Foi então que se formaram os reinos de Leão, Aragão, Navarra e Castela. No reinado dos reis católicos da Espanha, Fernando e Isabel, encerra-se o período de dominação dos árabes, que durou sete séculos e teve o importante papel de desencadear a formação de Portugal como Estado monárquico. Com a finalidade de libertar o território ibérico, nobres de diferentes regiões participaram da guerra santa. D. Henrique, conde de Borgonha, pelos seviços prestados, recebeu do rei de Leão e Castela o Condado Portucalense - território desmembrado da Galiza, junto ao rio Douro. A língua desse território era a mesma da Galiza. Coube a seu filho, D. Afonso Henriques, iniciar a nacionalidade portuguesa, como primeiro rei de Portugal, reconhecido por Afonso VII, rei de Leão, e pelo papa Alexandre III. Ao se separar da Galiza, Portugal vai estendendo os seus limites através de lutas contra os árabes e, com a conquista do Algarve, fixa os limites atuais de Portugal. A língua falada era o romanço galego-português, que apresentava relativa unidade e muita variedade e dá origem ao galego e ao português.








Bibliografia:
BASSETO, Bruno. Elementos da Filologia Românica. São Paulo: EDUSP, 2002.
BUENO, Francisco da Silveira. Estudos de filologia portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1967.
CHAVES DE MELO, Gladstone. Iniciação à filologia e à lingüística portuguesa. Rio de Janeiro: Ao livro Técnico, 1981.
ELIA, Sílvio. Preparação à Lingüística Românica. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1974.
STÖRIG, Hans Joachim. A aventura das línguas: Uma história dos idiomas do mundo. 4º Ed. São Paulo: Melhoramentos, 2003.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
CÂMARA JUNIOR, Mattoso.Dicionario de filologia e gramática. Rio de Janeiro, J. Ozon, 1964.
Professor Francisco Muriel

Um comentário:

ana disse...

nota dez!!!!!
enfim um blog de verdade.

parabéns.